sábado, 16 de fevereiro de 2013
Um pouco mais de possível, é necessário!
* Por Geysla Viana
A cada ano, no mês de julho, com
a comemoração do aniversário de promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, somos bombardeados por diversos meios (mídia, movimentos
sociais, conselhos de direitos, organizações da sociedade civil, etc) a
repensar e/ou criticar sobre a implementação deste. Vê-se que o ECA ainda
precisa deixar de ser visto só como mecanismo de proteção aos que cometem atos
infracionais ou, como se fala: “pra defender bandido”, mas um pouco mais como
um produto resultado de um tempo de lutas pelos direitos humanos daqueles que
mais precisavam (e precisam) do seu reconhecimento e garantia e, pelo
desenvolvimento auto-sustentado.
Já não bastasse esse “apelo
midiático invariável” temos recentemente um momento marcado por ações
higienistas de retirada dos chamados “noiados” das ruas das grandes capitais do
Sudeste do país nas dramáticas “cracolândias” reais ou imaginárias imbuindo ao
senso comum um único tipo de tratamento a usuários de drogas: as internações em
comunidades ou clínicas terapêuticas, involuntária e/ou compulsoriamente.
A discussão sobre políticas
voltadas a usuários de drogas extrapola a midiática polarização entre
abstinência ou redução de danos, legalização ou proibição do uso, e ultrapassa
até mesmo, ainda que sem desconsiderá-las, as questões de saúde pública e
justiça criminal. É necessária a responsabilidade dos governos e da sociedade
civil somada a uma mudança de pensamento por parte de tod@s, a quebra de
paradigmas, estigmas e tabus.
Para além do ponto de vista
farmacológico, é preciso antever a quantas anda a (in) satisfação das
principais necessidades nos âmbitos social, cultural, afetivo, biológico,
psicológico dos sujeitos. Entendendo-se que a nossa capacidade ou fragilidade
humana para enfrentar os desafios dependem de um conjunto integrado de aspectos
individuais, sociais e institucionais, é necessário efetivar-se uma política
que oportunize aos usuários de modo nocivo e problemático de drogas lícitas
e/ou ilícitas à atenção integral com a qualidade dos serviços ofertados (ou
não) pelas políticas sociais..
Adotando essa prática, fatores
como acesso à informação, grau de escolaridade, disponibilidade de recursos
materiais e imateriais, poder de influenciar decisões políticas e
possibilidades de enfrentar barreiras culturais se apresentam como espelho das
condições de bem estar e sustentação social, que envolvem ainda moradia, acesso
a bens de consumo e grau de liberdade de pensamento e expressão.
Outro tema sensível à sociedade
brasileira da contemporaneidade é a redução da maioridade penal, somada ao
levante de outras discussões (as reformas dos códigos penal e civil) trago-lhes
os indicadores divulgados no último dia 18 de julho pelo Mapa da Violência
2012 – Crianças e Adolescentes do Brasil. O mesmo revela que os
assassinatos de jovens até 19 anos cresceu 376% desde 1980, enquanto o total de
homicídios com vítimas de todas as faixas etárias subiu 259%.
Os números também revelam que há
baixíssima tolerância, em geral, para atos de delinquência ou de simples
rebeldia praticados pelos jovens. De modo geral, os governos e, em especial os
agentes públicos encarregados da segurança, não conseguem lidar bem com o
comportamento muitas vezes desafiador da juventude é o que denuncia: os casos
em que os autores das mortes são policiais são os muitos casos que engrossam as
estatísticas de violência para com estes jovens.
Assim, numa sociedade que ainda
não se livrou do autoritarismo, a juventude não mata mais e, sim, morre mais.
São sujeitos que compõem um “tipo social” marcado por um estilo de “sujeição
criminal” e, ainda são temidos por viverem numa geração estigmatizada. São
indivíduos que desviam, transgridem e que rompem com a ordem tradicional e que,
na ausência de um contexto referencial de proteção e com direitos violados (aonde
na maioria dos casos a única política que chega em suas comunidades
subalternadas são as de operação intensiva e ostensiva) acabam incorporando
práticas prejudiciais, passando a serem vistos simplesmente como riscos à
sociedade, “marginais”.
O desafio, senão o único lembrado
atualmente, é superar os ditames da criminalidade e da drogadicção consequentes
do uso problemático de drogas. Mas antes, é preciso um olhar cuidadoso, senão
afetuoso – afinal, quem não gosta de carinho? Trata-se de vê-los além do que
está visível, ou seja, além dos modos de vestir, falar, da postura
contestadora, às vezes ameaçadora e do próprio uso de drogas. Tem de ser vistos
na sua integralidade enquanto seres humanos, para além do ato infracional ou
conduta de risco.
O que ressalto é a perspectiva
das ações intersetoriais e transdisciplinares das políticas públicas; é a
importância de se considerar a perda da linearidade e de um padrão único de
comportamento e ações para os que se encontram em situação de vulnerabilidade,
acreditando em possibilidades de trajetórias intermitentes e reversíveis,
deixando para trás a confortável “demonização do drogado” e, ainda, refletindo
seriamente sobre a sua condição paralela de bode expiatório do crime organizado
que, por vezes em conivência com o próprio poder público, está a serviço de
interesses meramente econômicos e altamente lucrativos.
Sob o som da mesma nota distorcida
tem-se diversos programas ditos policiais na imprensa concedida expondo
diversas situações de violências à nossas crianças, adolescentes e jovens - uma
imprensa reforçando o que “todo mundo” já está pensando sobre o assunto. Assim,
apregoam através de índices altíssimos de audiência a visão do senso comum,
capitalizando política e financeiramente “líderes” e modelos que estão
atrelados a, no mínimo, violações aos direitos humanos.
Elementos do nosso cotidiano
recebem tratamento estético e discursivo, adquirindo a dimensão de espetáculo
da realidade, naturalizando e disfarçando a exposição e humilhação de
determinados segmentos sociais, fortalecendo estigmas e atentando contra seus
direitos como pessoas humanas. As questões trazidas na veiculação destes
programas envolvem uma reflexão sobre gênero, raça, geração, classe social,
democratização dos meios de comunicação, representações sociais, opressão,
direito à fala, etc.
Urge a realização de um movimento
capaz de construir uma outra comunicação, que seja promotora e não violadora de
direitos. Mas a quem interessa manter uma programação que fomenta a
intolerância, a homofobia, o preconceito, que criminaliza os pobres? Neste
espaço onde dizem ser o local onde os pobres mais aparecem, é também o espaço
onde se processa um discurso de criminalização, de estigmatização da pobreza,
coação, prejulgamento e exposição vexatória.
“Um pouco de possível, senão eu
sufoco”, pedia Deleuze. A meu ver, a frase mais pertinente do que nunca diante
da complexidade das representações sociais, da banalização das violências, da ignoração
ou subestimação de disfunções e sofrimento social que nos permeiam. É preciso
sonharmos e concebermos uma política que propicie uma sociedade verdadeiramente
altera, na qual “uma pessoa diferente” possa viver sua experiência diferente sem
limitações e que possa aprender a conviver com sua diferença e com as dos
outros ao seu lado e não acima ou abaixo de si.
Para falar em alteridade, desenvolvimento
humano e efetivação de direitos é preciso acima de tudo, haver justiça. Por
isso é necessário à toda a sociedade olhar e/ou vivenciar situações que possam
romper com o olhar e trato preconceituosos sobre crianças, adolescentes e
jovens. É necessária constante reflexão sobre a nossa prática cotidiana repleta
de manifestações de violências. Ações, palavras e atitudes intencionais nas
diversas relações interrelacionais de não reconhecimento do outro como sujeito
de direitos, são registros cristalinos das violências que nos permeiam,
trazendo consigo a digital de serem frequentemente banalizadas e, tornam-se
naturais, aceitáveis, às vezes imperceptíveis.
Num ano eleitoral
entendo/compreendo que a capacidade daqueles que pleiteiam cargos públicos é de
escutar e tomar decisões sobre os projetos de vidas de cada “diferente”
principalmente das nossas crianças, adolescentes e jovens de nossas cidades,
devendo romper com modelos excludentes e discricionários com uma compreensão
ampla ultrapassando o senso comum.
* A autora é coordenadora estadual da JPS no Estado do Ceará, Pedagoga, milita e trabalha na área de promoção e defesa dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens.
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